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- Camilla Costa
- Da BBC Brasil em So Paulo
“Ao ouvir as histrias dos amigos, voc ficava triste: os dermatologistas, todos bem de vida (…); o pessoal da cirurgia plstica chegando de carro importado e voc caladinha, envergonhada de estar em um fim de mundo, dirigindo seu Chevette hatch, ano 87, com trs calotas, e namorando Creisom, motorista da ambulncia do seu municpio…”.
Esta a descrio de um hipottico encontro de colegas de Medicina que aparece em uma apostila do Medcurso, o principal curso preparatrio para concursos mdicos no Brasil. A situao descrita acima introduz uma srie de perguntas sobre a ateno bsica de sade. A “motorista do Chevette”, que aparece envergonhada, uma mdica que optou por atuar em um Posto de Sade da Famlia (PSF) em uma cidade do interior. O material do curso preparatrio chega a dizer ainda que lderes de esquerda como Hugo Chvez e Evo Morales seriam os “heris” dos mdicos que trabalham com ateno bsica.
A apostila ilustra a imagem que mdicos de famlia e comunidade – que atuam majoritariamente no SUS e em postos de sade – tm entres os profissionais de Medicina no Brasil. Apesar de estarem no centro de programas de governo – como o Mais Mdicos – e das propostas de candidatos Presidncia para a sade, os mdicos de famlia so ainda uma especialidade pouco conhecida da populao e pouco procurada dentro das escolas de Medicina: dos cerca de 390 mil mdicos no pas, apenas cerca de 4 mil so mdicos de famlia, cerca de 1% do total.
Profissionais que optaram pela especialidade relatam sofrer preconceito entre professores e colegas, apesar da importncia da categoria no atendimento aos problemas de sade mais bsicos que afetam os brasileiros. “Sou formado h 12 anos e aconteceu em vrios momentos em encontros de turma de me perguntarem quando farei uma especialidade de verdade”, disse Rodrigo Lima, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Famlia e Comunidade, BBC Brasil.
“Eu j tive muitos alunos que chegaram a relatar: ‘Eu tenho vontade de ser mdico de famlia, mas no sei como minha famlia encararia isso, no sei se vou conseguir convenc-los’. Para um aluno de 20 anos difcil resistir presso de ter que ter o carro do ano, ser muito bem sucedido financeiramente. o ideal que a sociedade tem do que ser mdico.”
Desvalorizao
O Programa de Sade da Famlia – criado durante o governo Fernando Henrique Cardoso tem o objetivo de oferecer atendimento primrio de sade, que procure prevenir e resolver a maior parte dos problemas em determinado territrio sem a necessidade de encaminhamento para hospitais especializados. A estratgia foi ampliada durante os governos do PT.
Nos postos de sade e unidades bsicas, uma equipe de mdicos, enfermeiros e agentes comunitrios deve acompanhar at quatro mil pessoas desde crianas at idosos. O bom funcionamento do modelo, que tambm adotado por pases como Inglaterra, Canad e Austrlia, ajudaria a evitar a superlotao de emergncias e hospitais, um dos principais gargalos do atendimento mdico no pas.
Na prtica, no entanto, os profissionais relatam unidades com demanda mais alta do que o previsto, condies precrias de trabalho, falta de materiais bsicos para o atendimento e dificuldade de completar as equipes mdicas.
“Os Postos de Sade e Unidades Bsicas de Sade hoje no do conta da demanda por uma srie de razes. Ento o que temos hoje uma rede enorme de servios que no conseguem resolver os problemas e cria nas pessoas a ideia de que ‘o postinho no resolve, o melhor o hospital'”, diz Rodrigo Lima.
Alm do Mais Mdicos, que contratou profissionais brasileiros e estrangeiros para complementar equipes de sade da famlia em todo o pas, a formao de profissionais dispostos a atuar na ateno bsica tambm foi alvo de diversas estratgias durante os governos Lula e Dilma. Entre elas, a mudana no currculo de Medicina que passou a exigir que os alunos frequentem postos de sade desde o incio do curso, e o estmulo abertura de mais programas de residncia da especialidade no pas.
Muitos desses programas, no entanto, no conseguem preencher boa parte das vagas, segundo a SBMFC. Para os mdicos, um sinal de que os estudantes precisam de mais estmulo para seguirem a carreira. O salrio considerado um dos fatores que desestimula os mdicos – eles ganham em mdia R$ 8 mil, contando com bonificaes oferecidas pelas prefeituras para complementar os salrios.
“Nos ltimos anos, o governo teve iniciativas que foram interessantes, mas no suficientes. Se voc no botar dinheiro no bolso do cara para que ele pague as contas, ele no vai ficar”, disse Paulo Klingelhoefer de S, mdico de famlia e coordenador do curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Petrpolis (FMP), BBC Brasil.
“Os alunos falam isso na minha cara. Eu os coloco na ateno primria desde o comeo do curso. Eles acham muito legal, ficam com pena da populao, mas escolhem outro caminho. Escolhem fazer oftamologia, radiologia, dermatologia. Dizem que medicina da famlia coisa para pobre.”
Os trs candidatos melhor colocados nas pesquisas sobre a disputa pela Presidncia, Dilma Rousseff, Marina Silva e Acio Neves, mencionam a “ampliao” da Estratgia de Sade da Famlia em seus programas de governo e a “valorizao” dos profissionais de sade que atuam no servio pblico. Dois deles, Marina e Acio, falam especificamente da criao de uma carreira para mdicos no SUS.
A BBC Brasil tambm ouviu a opinio de leitores pelo Facebook. A questo gerou um debate acalorado sobre os aspectos positivos e negativos do atendimento bsico no sistema de sade pblico.
‘De esquerda’
Segundo relatos colhidos pela BBC Brasil (leia abaixo) os mdicos de famlia costumam ser vistos at mesmo pelos pacientes – como profissionais de qualidade inferior, discriminados por receberem salrios mais baixos em relao aos colegas e por serem considerados “de esquerda”.
Nas situaes criadas para as perguntas sobre sade da famlia, a apostila do Medcurso chega a dizer que “ideias de Evo Morales e Hugo Chvez” atraram a personagem que comea a trabalhar em um Posto de Sade da Famlia.
“Achamos que no valia a pena nos pronunciarmos publicamente sobre a apostila, mas ela contribui com esse estigma social de que o mdico de famlia um mdico inferior, que ‘no presta para nenhuma especialidade’. Isso de uma ignorncia incrvel”, diz Rodrigo Lima.
“Nesse cenrio desfavorvel nas faculdades, os alunos que se aproximam da rea geralmente so os que se incomodam mais com a questo da desigualdade social, algo que costuma ser associado esquerda. Mas isso tambm no regra, conheo muitos mdicos de famlia que so de direita”. afirma.
At a publicao desta reportagem, o Medgrupo, que produz as apostilas do Medcurso, no havia respondido ao pedido de resposta da BBC Brasil.
Confira alguns depoimentos de mdicos de famlia:
Rodrigo Oliveira, PE
A medicina de famlia e comunidade uma especialidade pouco divulgada at hoje. Eu no tinha nenhum professor que fosse mdico de famlia. Quando entrei na faculdade a reforma curricular j tinha acontecido, mas pouqussimos professores aderiram. Alguns at se recusaram a dar aulas. Eles diziam que no concordavam com a ideia de “formar mdico para trabalhar no posto”.
Dentro da faculdade de Medicina a gente percebia o quanto a profisso tinha status. Muitos colegas meus se espelhavam nesses professores, que eram reconhecidos como mdicos especialistas.
Eu tinha um professor de anatomia que era neurocirurgio e dizia em sala de aula que tnhamos que aprender para no nos tornarmos “mdicos de posto de sade”. Trabalhar em posto de sade visto como coisa de gente que no quis estudar para fazer uma residncia mais concorrida.
Acho que h preconceito, sim. No Brasil, esta a especialidade que trabalha com a periferia. No h um mdico de famlia famoso. uma especialidade que no paga to bem como as outras pagam. Dentro da sociedade e das famlias, a medicina de famlia e comunidade no vista como algo que d status para o mdico.
Quando eu disse a minha famlia que optei por essa especialidade foi difcil para eles entenderem. Eles diziam que eu no ia ganhar dinheiro e que eu ficaria desempregado, porque ainda achavam que era s um programa de governo e poderia acabar.
Percebo hoje que os alunos de medicina tm um maior interesse pela especialidade, mas no por causa do estmulo dos professores. Apenas pelo aumento da prtica na faculdade.
Natlia Ferreira, MG
Da minha turma de 40 pessoas, s duas, contando comigo, seguiram a carreira (de mdico de famlia). Sempre fomos discriminadas por causa disso, a medicina de famlia e comunidade a prima pobre das residncias. O mdico de famlia “aquele que no ganha dinheiro, que cuida de pobre e que no gosta de estudar”. As pessoas acham que quem no conseguiu passar em outra residncia, faz Medicina de Famlia.
Havia muita chacota dos colegas, dos professores. Diziam: “voc no quer ganhar dinheiro, quer ficar pobre para sempre? Gosta de trabalhar com pobre?”. Muitas pessoas no entendiam a residncia como necessria para essa especialidade.
At hoje a comunidade mdica me olha de lado quando digo que sou mdica da famlia. Fui acompanhar a cesrea de uma parente em Uberlndia e o obstetra me perguntou o que eu fazia. Eu disse que era mdica de famlia e ele perguntou se eu no queria fazer residncia em nada. Eu expliquei que j tinha residncia em medicina de famlia e comunidade e ele me disse: “mas ningum precisa de residncia para trabalhar no postinho, voc no quer ser mdica de verdade?”.
Acaba acontecendo um distanciamento de outros colegas mdicos, porque as conversas, as prioridades, a ateno ao paciente diferente. Eu gosto de ter vnculo, de conhecer o paciente, de ir s casas deles. E para muitos dos meus colegas no assim. Muitos escolhem algumas especialidades porque no preciso ter tanto contato com o paciente. O mdico tambm escolhe muito a especialidade pela qualidade de vida que ela oferece, por ter acesso a alguns privilgios que a categoria mdica tem.
Fabricio Brazo, PA
Para minha famlia foi impactante eu dizer que queria fazer medicina da famlia e comunidade, porque ningum sabia direito o que era, qual era a rotina do profissional. Todo mundo est muito acostumado com as divises em reas, ento me perguntavam que tipo de gente eu iria atender. Durante a minha residncia ainda perguntavam: “mas tu atende paciente? Tu trata doena?”.
Achavam que eu estava me capacitando para uma carreira de gesto. At meu tio, que clnico e ultrassonografista, ainda tem dvidas sobre o que o trabalho.
Acho que a imagem histrica do que mdico – que o especialista, aclamado pela populao – acaba afastando as pessoas da medicina de famlia. Eu observava muito nos estudantes a viso do mdico como um profissional liberal: me formo numa instituio pblica, trabalho um pouco para ganhar essa experincia e vou abrir meu consultrio.
J a medicina de famlia e comunidade tem como grande – quase nico – campo de trabalho o SUS. E isso desencoraja muitos dos nossos colegas por conta da pouca consolidao das unidades h algumas mal funcionantes, com pouca estrutura e profissionais que no cumprem carga horria – e falta de um plano de carreira.
Murilo Marcos, SC
O bullying universitrio tambm existiu para mim e isso passou a me abalar menos quando tive mais certeza do que eu queria. No meio do curso eu sofri muito por isso, ser diferente da maioria difcil. Mas eu procurava estar mais perto das pessoas que pensavam parecido.
Meu irmo, que tambm mdico, me chamava de “estrela vermelha”, porque eu vinha com histrias de mudar o mundo e ele estava no caminho da cirurgia. Mas um dia ele me veio me perguntar o que poderia fazer para mudar um pouco a realidade dos pacientes dele muitos tinham cncer de pulmo e ele no podia fazer nada.
O grande n a viso que se tem da Medicina. Por mais que a gente tenha polticas e evidncias de que o caminho da medicina de famlia eficiente, as pessoas que participam da formao dos mdicos no so mdicos de famlia.
Meu pai tem uma histria bem diferente da minha e era bastante crtico em relao a eu no querer trabalhar em um hospital. Minha me foi a pessoa com quem eu mais discuti sobre o que quero fazer da vida, por causa do que ela achava que era trabalhar em um posto, no interior, com unidades mal estruturadas. Meus pais me perguntavam: “O mdico que tem um carro velho, tu quer ser isso mesmo?”. Tempos depois, ela disse pra mim: “Murilo, eu j te aceito uns 80%”.
Frederico Miranda, RJ
Eu sempre quis fazer medicina de famlia de comunidade. Na prpria graduao a gente tinha opes de estgios alternativos em unidades da famlia e eu sempre gostei desse modelo de ajudar a populao mais carente. Os mdicos geralmente esto muito mais voltados para hospitais, procedimentos tcnicos.
Sempre ouvi “voc maluco, no faz isso no, no d dinheiro”. Tambm dizem que o mdico de famlia no um mdico bom, que no tem preparo. De fato h muitos mdicos despreparados para lidar com as pessoas atuando nas Unidades de Sade da Famlia. Se fosse obrigatrio fazer a residncia para atuar na ateno bsica, isso ajudaria a acabar com essa imagem.
Diego Bonfim, BA
Havia resistncia dos professores e dos colegas. No caso dos professores, h muito a fala de que o mdico de famlia no tem capacidade tcnica, no ganha bem, que pode ganhar mais, que os casos so muito simples. Isso se reflete nos colegas. Alguns diziam que era “desperdcio” que eu fizesse medicina de famlia, porque eu era bom aluno. De forma geral, era visto como algo para pessoas em comeo de carreira e em fim de carreira.
No incio, quando comecei a trabalhar na cidade de Cachoeira, alguns pacientes me falavam “obrigada doutor, tudo de bom, espero que tudo d certo para voc, que algum dia voc tenha sua clnica, consiga trabalhar num hospital, saia daqui desse postinho”.
Eu achava que os estudantes de Medicina tinham que ser de esquerda para querer fazer medicina de famlia e comunidade, porque no Nordeste as coisas so um pouco assim, essa ligao maior. Mas quando fiz residncia em Ribeiro Preto (SP), percebi que no eixo Sul-Sudeste diferente, que muito comum que pessoas no ligadas esquerda tambm sejam mdicos de famlia.
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